Como amar a Deus acima de todas as coisas? Veja essa reflexão de Santo Afonso Maria de Ligório
Comprehenderunt Iesum et ligaverunt eum — “Eles prenderam a Jesus e o ligaram” (Io. 18, 12)
Imaginemos ver a Jesus, que, abandonado de seus discípulos, é preso, ligado e levado a desoras e com grande tumulto pelas ruas de Jerusalém.
Ao verem-No assim, todos que O veneraram, já O odeiam e se envergonham de O terem tido pelo Messias.
Se nós, à vista de um Deus tão humilhado por nosso amor e para nosso ensino, ainda amarmos os bens fugazes da terra, ambicionarmos as honras e preeminências, não somos dignos do nome de cristãos.
O Redentor, sabendo que Judas se aproximava, acompanhado dos Judeus e dos soldados, levanta-se, banhado ainda no suor da agonia mortal.
Com o rosto pálido, mas com o coração todo abrasado em amor, vai-lhes ao encontro para se lhes entregar nas mãos, e vendo-os chegados perto, diz:
Quem quaeritis? — “A quem buscais?”
Afigura-te, minha alma, que neste momento Jesus te pergunta também: Dize-me, a quem buscas?
Ah, meu Senhor, a quem poderei buscar senão a Vós, que descestes do céu à terra para me buscar e não me ver perdido?
Comprehenderunt Iesum, et ligaverunt eum — “Eles prenderam a Jesus e o ligaram”. Ó céus, um Deus ligado!
Que diríamos, se víssemos um rei preso e ligado pelos seus servos? E que dizemos agora vendo um Deus entregue às mãos da gentalha?
Ó cordas bem-aventuradas!
Vós que ligastes o meu Redentor, ah! Liga-me a Ele, mas liga-me de tal modo que nunca mais me possa separar de seu amor.
Considera, minha alma, como um lhe liga as mãos, outro o injuria, mais outro o empurra, e o Cordeiro inocente se deixa ligar e empurrar quanto quiserem.
Não procura fugir das mãos deles, não chama por auxílio, não se queixa de tantas injúrias, nem mesmo pergunta por que é tratado assim.
Eis, pois, realizada a profecia de Isaías: Oblatus est quia ipse voluit, et non aperuit os suum; sicut ovis ad occisionem ducetur (2) — “Foi oferecido, porque ele mesmo quis, e não abriu a sua boca; ele será levado como uma ovelha ao matadouro”.
E os Seus discípulos O abandonaram…
Mas onde é que se acham os seus discípulos? Que fazem? Já não podendo livrá-Lo das mãos de seus inimigos, ao menos que o tivessem acompanhado para defenderem a inocência de Jesus perante os juízes, ou sequer para o consolarem com a sua presença!
Mas não; o Evangelho diz: Tunc discipuli eius, relinquentes eum, omnes fugerunt (3) — “Então os seus discípulos desamparando-O, fugiram todos”.
Qual não devia ser a tristeza de Jesus, vendo que até os seus discípulos queridos fugiam e O desamparavam?
Mas, ó céus, então o Senhor viu ao mesmo tempo todas aquelas almas que, sendo por Ele mais favorecidas, haviam de abandoná-Lo depois e de Lhe virar as costas.
Nosso Salvador, ligado como malfeitor, entra em Jerusalém. Onde foi aclamado com tantas honras e louvores.
Passa a desoras pelas ruas, entre lanternas e tochas, e tão grande é o alarido e tumulto, que todos deviam pensar que se levava qualquer grande criminoso.
A gente chega à janela e pergunta: quem é que foi preso? e respondem-lhe: Jesus, o Nazareno, que foi desmascarado como sendo um sedutor, um impostor, um falso profeta e réu de morte.
Quais não deviam ser então em todo o povo os sofrimentos de desprezo e indignação, quando viram Jesus Cristo, acolhido primeiro como o Messias, preso por ordem dos juízes, como impostor!
Ah! Como se trocou então a veneração em ódio, como se arrependeu cada um de O ter honrado, envergonhando-se de ter honrado um malfeitor, como se fosse o Messias! — Eis, pois, a que estado se reduziu o Filho de Deus para nos mostrar o nada das honras e dos aplausos do mundo!
E como é que eu, apesar de ver um Deus tão humilhado e injuriado por meu amor, como é que eu hei de viver tão amante dos bens fugazes da terra, ambicionar as honras, as dignidades, as preeminências, e não saber sofrer o mínimo desprezo?
Ai de mim, pecador e soberbo!
Donde, ó meu Senhor, me pode vir tamanho orgulho, depois que mereci tantas vezes o inferno? Meu Jesus, suplico-Vos pelos merecimentos dos desprezos que sofrestes, dai-me a graça de
Vos imitar.
Proponho com o vosso auxílio reprimir de hoje em diante todo o ressentimento e receber com paciência, alegria e contentamento todas as humilhações, todas as injúrias e todas as afrontas que me possam ser feitas.
Proponho, além disso, para Vos agradar, fazer todo bem possível a quem me despreza; ao menos falarei sempre bem dele e rogarei por ele. Vós, ó meu Senhor, pelas dores de Maria Santíssima, fortalecei estes meus propósitos e dai-me a graça de Vos ser fiel.
Fonte: Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Primeiro: Desde o primeiro Domingo do Advento até Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 385-387
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